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Rui Barbosa e a Vernaculidade

Sendo o Rui Barbosa o homenageado da presente Folha Dobrada, não poderia esquivar-me a inaugurar nosso caderno literário com o tema da vernaculidade. Digo esquivar pois trata-se de matéria espinhosa, que levou — e leva — filólogos, gramáticos, estetas e até os grandes da língua aos mais variados embaraços. Dissuade-me o fanatismo dos partidos, convence-me o amor dos velhos clássicos, dos Barros, dos Bernardes, dos Vieiras. Está feito: pronunciei-me.1“Pois por isso mesmo vou: pronunciei-me.”, dizia Almeida Garrett no início de sua Viagens na Minha Terra (Clássicos Garnier, São Paulo, 1965, p. 146). Rendo aqui minha homenagem a uma das mais belas obras da língua portuguesa.

Vamos ao nosso Rui Barbosa. O caso deu-se assim:2Para um relato minucioso, sugiro a leitura de Rui e a Réplica, de Américo de Moura, in R. Barbosa, Escritos e discursos seletos, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997, pp. 879-901.

Em 1899, Epitácio Pessoa, então ministro da Justiça de Campos Sales (1898-1902), encomendava ao jovem professor Clóvis Beviláqua a elaboração de um projeto de Código Civil. Havia pressa na matéria. Como veremos, pressa foi um dos motivos para a celeuma: desde quando era ministro da Justiça do Governo Provisório (1889-1891), queria Campos Sales um Código Civil. Queria-o antes e, frustrado, queria-o agora.

A ordem era que o Código fosse sancionado antes do término do mandato.

Tudo corre a toque de caixa: redige Clóvis o projeto primitivo em seis ou sete meses, Epitácio submete-o a alguns jurisconsultos, leva o texto a uma comissão revisora e, em novembro de 1900, encaminha o Projeto Revisto ao Congresso. Após alguns meses de inatividade, faz-se nova comissão revisora que, obediente ao Governo, publica o documento no Diário do Congresso em 26 de janeiro de 1902.

Dois dias depois, o presidente da Comissão, deputado Seabra, leva um exemplar do texto — coisa curiosa! — a seu antigo professor Ernesto Carneiro Ribeiro, reputadíssimo gramático, para que revisasse, com máxima urgência e em poucos dias, os mais de mil e oitocentos artigos do Projeto. Aceita o filólogo a hercúlea tarefa (com ligeira hesitação), revisa o texto em “quatro dias e algumas horas”3Ligeiras observações sobre as emendas do Dr. Ruy Barbosa feitas á redacção do Projecto do Código Civil, Officinas dos dois Mundos, Salvador, 1902, p. 6. , emenda-o com setenta e sete alterações, devolve o trabalho ao presidente da Comissão que, sem votação ou alarde, o apresenta à Câmara no dia 27 de fevereiro, em sessão convocada extraordinariamente para finalizar a discussão do Código. Em 31 de março de 1902, enfim, o Projeto é encaminhado à Comissão Especial do Senado, presidida pelo senador Rui Barbosa, para aprovação.

E eis que começa a celebérrima batalha vernacular de nossa língua.

Mas antes, voltemos um pouco.

Ou seja por melindre ou por escrúpulo, fato é que Rui Barbosa se opusera à escolha de Clóvis Beviláqua como redator do Código Civil desde antes de sua nomeação. Em artigo publicado n’A Imprensa, ainda em 1898, criticava ele a pressa na elaboração do Projeto, a pouca idade do Redator e — inusitadamente — sua inaptidão para o domínio da língua:

Falta-lhe um requisito primário, essencial, soberano para tais obras: a ciência da sua língua, a vernaculidade, a casta correção do escrever. Há, nos seus livros, um desalinho, uma negligência, um desdém pela boa linguagem, que lhes tira a concisão, lhes tolda a clareza, lhes entibia o vigor. (…) Sua frase não tem o sabor português: é mais estrangeira, repassada de laivos germânicos e francesismos, tropeçando por isso em impropriedades e obscuridades, que a desluzem.4Obras Completas de Rui Barbosa — A Imprensa, vol. XXVI 1899, tomo IV, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1954, pp. 92-93.

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    “Pois por isso mesmo vou: pronunciei-me.”, dizia Almeida Garrett no início de sua Viagens na Minha Terra (Clássicos Garnier, São Paulo, 1965, p. 146). Rendo aqui minha homenagem a uma das mais belas obras da língua portuguesa.
  • 2
    Para um relato minucioso, sugiro a leitura de Rui e a Réplica, de Américo de Moura, in R. Barbosa, Escritos e discursos seletos, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997, pp. 879-901.
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    Ligeiras observações sobre as emendas do Dr. Ruy Barbosa feitas á redacção do Projecto do Código Civil, Officinas dos dois Mundos, Salvador, 1902, p. 6.
  • 4
    Obras Completas de Rui Barbosa — A Imprensa, vol. XXVI 1899, tomo IV, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1954, pp. 92-93.

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